Marco Weissheimer O Laboratório de Hematologia e Células-Tronco, da Faculdade de Farmácia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), está realizando uma pesquisa inédita sobre produção de tecidos e regeneração de órgãos humanos, com importantes implicações na área da saúde. Um dos principais objetivos dessa pesquisa é desenvolver um novo tipo de material que servirá de suporte ao crescimento de células-tronco em tecidos lesionados. Essa pesquisa recebeu um reforço de peso com a chegada do físico alemão Joachim Wendorff, da Universidade de Marburg, a Porto Alegre, para trabalhar em parceria com a pesquisadora Patricia Pranke, chefe do Laboratório de Hematologia e Células-Tronco. Em entrevista ao Sul21, Patricia Pranke fala sobre essa pesquisa que está tornando a UFRGS referência nacional na área. Juntamente com a professora Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP), Pranke deu suporte científico ao Congresso Nacional e ao Senado (a pedido dos parlamentares) para escrever a lei que aprovou as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas em 2005. Mais tarde, Patricia fez parte do grupo de 22 cientistas convocados pelo Supremo Tribunal Federal para debater a Lei de Biossegurança. O STF acabou por liberar os estudos, em maio de 2008. Sul21: Como iniciou seu interesse científico nas células-tronco? Poderia fazer um breve relato da história dessa pesquisa? [image src=”http://i2.wp.com/www.sul21.com.br/jornal/wp-content/uploads/2013/04/DSC9258-1.jpg?resize=200%2C300″ align=”left”] Por Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 Patricia Pranke: Eu sou hematologista, de formação. Sou professora na Faculdade de Farmácia da UFRGS na área de hematologia. Desde muito cedo me interessei por essa área é já dou aulas de hematologia há 18 anos. Fiz mestrado no hemocentro da Unicamp. Quando vim trabalhar como professora na UFRGS, logo comecei um doutorado e me interessei pela área de células-tronco de cordão umbilical. Naquela época ninguém falava muito de células-tronco. A gente falava mais de sangue de cordão umbilical. Fiz um doutorado-sanduíche nos Estados Unidos, de 2000 a 2001, onde trabalhei no primeiro banco público de sangue de cordão umbilical criado no mundo, em Nova York. Lá dentro tinha um laboratório de células-tronco. Voltando ao Brasil, comecei a fazer pesquisa com células-tronco e a montar um laboratório nesta área. Sul21: Naquela época nem havia o debate sobre esse tema que acabou indo parar no STF? Patricia Pranke: Na verdade, nós é que provocamos aquele debate, eu e a Mayana Zatz, da USP. Fomos as duas cientistas convidadas pelo Congresso Nacional para dar suporte técnico à redação da lei que aprovou as pesquisas com células-tronco no Brasil. Eu voltei dos Estados Unidos, em 2002. Eu vivi lá o período de transição entre os governos Clinton e Bush. Na época do Clinton, a pesquisa com células humanas embrionárias era permitida. A polêmica envolve justamente essas células embrionárias. Sobre as outras células, que chamamos de adultas, não há problema. Ninguém é contra usar células-tronco da medula óssea, do cordão umbilical ou do lipoaspirado. Isso todo mundo permite. Não há nenhuma religião contra esse tipo de uso. Com a chegada de Bush à presidência ocorreu a proibição de pesquisas com células-tronco, motivada por pressões religiosas. Naquela época, na verdade, a pesquisa com células-tronco embrionárias estava começando no mundo. Eu vivi esse debate nos Estados Unidos. Quando voltei ao Brasil, me dei conta de que aqui sequer existia uma lei. Não existia nada, nem a favor nem contra. O meu medo era que, não existindo uma lei dizendo o que não pode ser feito, se fizesse um uso indiscriminado de células-tronco, sem uma regulamentação, sem uma norma ética. Um pesquisador sério quer trabalhar dentro de uma norma ética, com limites estabelecidos. Uma coisa é fazer pesquisa com células-tronco embrionárias, outra é sair fazendo clonagem de gente. E não existia uma lei no Brasil que falasse sobre isso. Quando voltei dos EUA, falei com a Mayana e começamos a trabalhar em defesa dessa regulamentação. Foi assim que acabamos assessorando deputados e senadores na elaboração dessa lei que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas no Brasil. De 2003 a 2005 ficamos trabalhando em cima disso. Fomos a Brasília inúmeras vezes, praticamente todas as semanas. Sul21: E depois veio o debate no STF Patricia Pranke: Sim. Em 2005, foi aprovada a lei, porém, logo em seguida, o então subprocurador geral da República, Claudio Fonteles, ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a lei, tentando proibir as pesquisas. Os pesquisadores ficaram inseguros. Suponha que a gente estivesse no meio de uma tese de mestrado ou de doutorado de um aluno e no meio da sua pesquisa ou no final vem uma lei dizendo que ele não pode mais trabalhar. Criou-se um clima de insegurança muito grande no meio científico e praticamente ninguém trabalhou com células-tronco naquele período, até que essa Adin fosse julgada, o que demorou três anos para acontecer. Em 2008, pela primeira vez na história do Brasil, o Supremo promoveu uma audiência pública. Nós, cientistas, fomos convidados a participar, agora em um grupo maior. Finalmente, o STF decidiu pela constitucionalidade da lei e foi aí que iniciaram, de fato, as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. O nosso laboratório aqui na UFRGS começou a funcionar entre 2007 e 2008 fazendo pesquisa com células-tronco adultas provenientes do cordão umbilical, que é o meu primeiro foco de interesse. Sul21: O que são as células-tronco? Ainda existe muita desinformação nesta área. Patricia Pranke: As células-tronco têm a capacidade de se dividir dando origem a diferentes tipos de células. Foi essa característica que despertou o interesse do mundo científico. Transplante de células-tronco já existe há mais de quarenta anos, como é o caso do transplante de medula óssea. Só que naquela época não chamávamos isso de células-tronco. Na virada do século, aconteceram duas quebras de paradigma. Em primeiro lugar, descobrimos que não é apenas na medula óssea que existem células-tronco. Em segundo, não existem apenas células-tronco que originam sangue. Há outros tipos de células-tronco. Então, hoje, definimos a célula-tronco do seguinte modo: é uma célula imatura, bem jovem, que tem a capacidade de dar origem a vários tipos de célula. Nós temos dois grandes grupos de células-tronco: as embrionárias e as adultas. Uma célula-tronco embrionária é aquela que provém do embrião no início do seu desenvolvimento, de quatro a seis dias de desenvolvimento embrionário. Elas têm a capacidade de originar qualquer tipo de célula do nosso organismo. Vou dar um exemplo: se nós somos um organismo complexo com 70 trilhões de células, isso tudo veio de uma única célula chamada zigoto, que é a união do óvulo com o espermatozoide. Então, uma única célula deste tipo pode formar qualquer tipo de célula. Depois que as primeiras células criadas a partir do zigoto entram em contato com a parede do útero materno, elas vão começar a se diferenciar em camadas e a se especializar como neurônios, músculos, etc. Essas células passam a ser chamadas de células-tronco adultas. A célula-tronco que eu tenho no fígado de um pequeno feto de quatro meses de vida já é adulta. Ela pode formar vários tipos de célula, mas daquele órgão específico. A célula-tronco adulta é aquela que está dentro dos órgãos já formados. Elas têm uma capacidade um pouco mais limitada de formar outras células. Nós temos ainda outro tipo de célula-tronco que é a mesenquimal, que é mais parecida com a embrionária e pode formar praticamente qualquer outro tipo de célula. Ela é uma célula-tronco adulta e existe em vários órgãos do nosso corpo: na medula, no cordão umbilical, etc. Agora, o sangue do cordão umbilical é bom para tratar doenças hematológicas, mas não para tratar outras doenças. Isso porque ele não tem as células-tronco mesenquimais, mas sim as células-tronco hematopoéticas. Quem tem as células mesenquimais é a parede do cordão umbilical. Portanto, esses congelamentos de sangue umbilical que algumas pessoas fazem para uso próprio, praticamente só vão servir para doenças hematológicas, pela pobreza de células-tronco mesenquimais. Sul21: E como a nanotecnologia entrou nessas pesquisas? Patricia Pranke: Mais recentemente, nós associamos uma técnica de nanotecnologia para formar determinados materiais que chamamos se scaffold. Em português poderíamos traduzir como andaime ou arcabouço. Esse material é formado por milhares e milhares de nanofibras. Nós cultivamos as células-tronco para crescer em meio a essa malha de nanofibras. Um nanometro é um bilhão de vezes menor que um metro. Se pudéssemos fazer um fio com essas nanofibras [a professora Patricia refere-se aqui a um pequeno scaffold redondo de cerca de cinco centímetros de diâmetro e com a espessura aproximada de uma folha de papel], teríamos um fio de dez mil quilômetros. Dez mil quilômetros de fibras. Esse material é formado de polímeros. Há vários tipos de polímeros que podemos utilizar. Esse que estamos vendo aqui não dissolve em água. Nós usamos esses materiais em várias pesquisas. Temos um projeto, por exemplo, onde estamos tentando regenerar pele de ratinhos. Temos outros para regenerar laringe e nervos periféricos. Nosso desafio é produzir um material que seja biodegradável e biocompatível. A ideia não é criar uma prótese, mas sim que esse material sirva de suporte, que funcione como um molde que guie o crescimento das células-tronco e depois vá se degradando. O nosso objetivo é, portanto, criar tecidos e, no futuro, até criar órgãos artificiais. Sul21: Já há aplicação em humanos do resultado dessas pesquisas? Patricia Pranke: Em alguns casos, sim. O que é consagrado hoje na medicina é usar células-tronco para tratar doenças hematológicas, como leucemia, linfoma e anemia aplásica, por exemplo. Quando falamos de células-tronco para tratar AVC, doenças cardíacas, diabetes, regeneração de pele ou regeneração de osso, estamos falando de pesquisa clínica. Há algumas que estão em fase de teste com animais (pesquisas pré-clínicas) e outras que já foram aprovadas pelo Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e que podem ser trabalhadas com pacientes. Mas, cabe enfatizar: ainda estamos falando de pesquisa. Não está provado ainda que funciona e é totalmente seguro. Só depois desse experimento terminar é que será possível liberá-lo para uso universal. É importante que as pessoas saibam disso para evitar que alguém saia fazendo um tratamento desse tipo (ainda em fase experimental) e, pior, cobrando por ele. Isso é consenso mundial: pesquisa clínica não se cobra. Sul21: E há gente fazendo isso? Patricia Pranke: Sim. Na China, há clínicas que atraem gente do Ocidente (inclusive brasileiros) prometendo, por exemplo, curar lesão raquimedular. Vários brasileiros já foram para lá, gastando 20, 30 mil dólares. Há uma maneira muito fácil de identificar se uma determinada pesquisa é séria ou é picaretagem. Basta perguntar pela aprovação do Comitê de Ética local para a realização daquela pesquisa. Em segundo lugar, ninguém trabalha sozinho no fundo de um quintal com esse tipo de pesquisa. Eu não posso abrir um consultório e sair injetando células-tronco nas pessoas. Pesquisadores trabalham em uma clínica, em um hospital grande, em um centro universitário, geralmente com várias pessoas. Se esse pessoal da China diz que está curando lesão raquimedular, por que não publicam os resultados? A forma de provarmos que nosso trabalho é sério é publicando e compartilhando nossos resultados com a comunidade científica. Se o meu experimento está correto outro cientista tem que poder repeti-lo e obter os mesmos resultados. Se essas pessoas estão realizando algo inédito, que publiquem então. Sem artigo publicado, não há comprovação científica. Sul21: Quais são as pesquisas que estão sendo desenvolvidas no laboratório de Hematologia e Células-Tronco da UFRGS? Há outras faculdades envolvidas? Patricia Pranke: Temos várias pesquisas em andamento e trabalhamos muito com parcerias. Temos um trabalho, por exemplo, com o professor Carlos Alexandre Neto, nosso atual reitor e que também é neurocientista. Trabalhamos tanto com células-tronco de cordão umbilical quanto de dente em duas áreas principais: lesão raquimedular e AVC (Acidente Vascular Cerebral). Temos especificamente um trabalho com hipóxia isquemia cerebral neonatal. O paciente paraplégico ou tetraplégico geralmente tem uma lesão por compressão. Em casos de acidentes ou quedas dificilmente há uma ruptura da medula espinhal. O que é mais comum é o esmagamento dela. Em casos de ruptura, como os provocados por uma bala perdida, por exemplo, nenhuma célula-tronco consegue recuperar. Já nos casos de esmagamento estamos tentando regenerar. Nós somos pioneiros em trazer essa associação de nanotecnologia com células-tronco da Alemanha para o Brasil. A nanotecnologia produz esses moldes e nós os cultivamos com células-tronco com o objetivo de regenerar tecidos de vários tipos: osso, pele, cartilagem (como laringe e traqueia), lesão raquimedular, nervo periférico e artérias. Todas elas envolvem essa associação com nanotecnologia. Esse é nosso diferencial e estamos apostando muito nele. O mundo inteiro está voltando os olhos para essa nova área da ciência que se chama engenharia de tecidos. Além da terapia celular, quando usamos células para tratar uma determinada doença, estamos avançando agora nesta área de engenharia de tecidos, cujo objetivo é reconstruir tecidos ou quem sabe até, no futuro, construir um órgão inteiro. Esse é o nosso sonho. A Mary Shelley não sonhou com isso quando escreveu Frankenstein, em 1818? Eu sempre provoco meus alunos com esse tema da ficção. O que nasceu primeiro: a ciência ou a ficção? Parece que nasceram juntas. A ficção é a imaginação do ser humano querendo fazer alguma coisa. O que a Mary Shelley fez como ficção, em 1818, nada mais foi do que um transplante múltiplo de órgãos. Hoje a gente faz transplante de até oito órgãos ao mesmo tempo. Não é um Frankenstein? Em 1818, era tão maluco pensar isso, que a imaginação das pessoas transformou o resultado em um monstro. Tudo o que a gente não entende acaba sendo pensado como um monstro.]]>